O clima da 9a Bienal do Mercosul
Ao observar o clima, geralmente nos enganamos. O que aparentemente parece calmo, pode logo se transformar em tormenta ou um céu muito cinza e denso pode se abrir azul como anil. A 9a edição da Bienal do Mercosul, que acontece em Porto Alegre entre os dias 13 de setembro e 10 de novembro de 2013, traz o tema Si el tiempo lo permite [em português, Se o clima for favorável], ou seja, mais do que tudo, está a mercé da natureza (humana, climática, imaginativa). Esta Bienal fala do meio ambiente num sentido amplo, técnico, poético e até mesmo exotérico, considerando muitas áreas que geralmente não são contempladas pelas artes plásticas. A verdade é que, ao observar o clima, geralmente são reveladas boas surpresas.
A mexicana Sofía Hernández Chong Cuy é a curadora-geral, Mônica Hoff, há anos dedicada ao consistente educativo da Bienal do Mercosul, este ano é a curadora de base e responsável pelo programa Redes de Formação; Raimundas Malašauskas é o curador do tempo, Bernardo de Souza o curador do espaço e Sarah Demeuse, Daniela Pérez, Júlia Rebouças e Dominic Willsdon são os curadores da nuvem.
Nuvem é também o nome da publicação de lançamento dessa Bienal, um pequeno livro que reúne ensaios como “O romance da Lua”, de Julio Verne; “A ciência e a ética da curiosidade”, de Sundar Sarukkai; “Sobre a importância dos desastres naturais”, de Walter de Maria, e uma entrevista com Eduardo Viveiros de Castro, dentre outros excelentes textos. O livro sinaliza a proposta de integrar mais fortemente a arte com as mais diversas disciplinas, pensando a produção dos artistas de maneira transversal. A Bienal apresenta a arte “como portais para outros mundos – imaginações, explorações e manifestações do que está abaixo e acima do plano social”, focando na interação entre cultura e natureza. Cultura não apenas entendida como arte, mas como o conjunto múltiplo da produção humana, das invenções, do avanço tecnológico, das ficções, dos deslocamentos sociais, da produção criada por historiadores, geógrafos, astrônomos, biólogos, navegadores e também por artistas. A natureza entendida como cultura.
Paisagem é aquilo que a vista alcança, ou, mais completamente, aquilo que a nossa mente nos faz ver. Temos os campos, as árvores, as montanhas, mas também toda a cidade, o movimento das ruas, o comércio, as relações sociais e as infovias que perfazem nosso olhar sobre o mundo. E o nosso mundo é somado aos dos outros, formando uma paisagem que não é mais tátil, não é exatamente visível, mas que configura um determinado ambiente. Segundo Sofía, a ideia “é descobrir recursos naturais e materiais culturais sob uma nova ótica, especulando as bases que têm marcado as distinções entre a descoberta e a invenção”, identificando e propondo sistemas de crenças mutáveis. “Com um enfoque abertamente contingente aos distúrbios atmosféricos, esse processo envolve diálogos constantes sobre o que é imaginário e o que é real.”
Artistas, intelectuais e curiosos trazem discussões “impossíveis”, hiperbólicas, advindas de ciências antigas ou ficcionais, com resultados impensáveis, monumentais ou invisíveis. Ora, nada mais familiar para uma Bienal chamada “do Mercosul”, um pseudo-bloco econômico tão monumental quanto invisível. Aliás, os moradores dessa região do Brasil estão muito acostumados a conviver com o universo da ficção – e esse é um dado que considero importante na integração com o tema dessa Bienal –, tendo seu cotidiano transformado constantemente por uma ideia ficcional (e aficionada) de “nação”, de terra prometida, de lugar onde tudo acontece de melhor no melhor dos mundos. Pouco importam as mazelas das gentes, a ignorância política, o descaso com a educação e a saúde e o abandono da estrutura pública, o gaúcho do Rio Grande do Sul tem sempre a visão de que ali é o melhor lugar do mundo. De seu mundo, sem dúvida, haja vista que costumamos amar a terra onde nascemos. Mas há, no sul do Brasil, uma espécie de cosmogonia de um povo idílico (forte e orgulhoso) que impede que a população enxergue que seu mundo faz parte de outros, faz parte do Brasil e faz parte da América Latina, o que torna, sem dúvida, ainda mais abstrata a ideia de Mercosul.
Acostumado a ver o que quer, o morador de Porto Alegre tem a ficção arraigada ao seu cotidiano, e talvez o melhor exemplo seja justamente o geográfico. A cidade, nascida à beira do lago Guaíba, por alguns erros de documentação histórica, acabou por considerar o Guaíba um rio. E lá há a avenida Beira Rio, o Estádio Beira Rio e todo um universo cultural de canções, poesias, pinturas, gravuras e mapas que enaltecem o chamado Rio Guaíba. Geógrafos e geólogos já provaram que ali repousa um lago, mas a população resiste: olha para o lago e enxerga o rio. E isso é muito bonito, porque mostra que o imaginário está sobreposto à realidade. A realidade ali é outra. E acho que é nesse ponto que torna tão acertado o tema da 9a Bienal numa cidade como Porto Alegre.
Devemos também lembrar da importância da Bienal para a formação do público de arte da região: desde 1997 há um intenso contato da população com a arte contemporânea e com os projetos educativos desenvolvidos a partir de cada edição. A Fundação Bienal do Mercosul tem, ao longo dos anos, especializado e ampliado suas ações educativas, com a produção de material para professores de ensino da rede pública, extenso curso de formação para monitores e intercâmbio com instituições culturais do interior do estado, com seminários, residências e mostras itinerantes. Quase duas décadas depois, o resultado é, sem dúvida, animador. O público crescente de jovens e adultos mostra que, a cada edição, são desfeitas algumas das barreiras para o acesso à arte contemporânea.
O mesmo enaltecimento cego que valoriza e preserva a cultura da região impediu, por muitos anos, que a arte moderna pudesse se estabelecer. Quando, nos idos da década de 1930, alguns artistas tentaram pintar de maneira “futurista” (como era comum chamar genericamente a arte moderna), foram ferozmente criticados e combatidos, pois, para a sociedade da época, manter a tradição significava igualmente manter o academicismo, e a arte moderna representava a degeneração – e uso aqui essa palavra de maneira proposital – da tradição. Foram criadas inclusive associações para combater esse tipo de arte. Nos anos 1940, muitos artistas encontraram um modo de exercer a criação modernista somente no campo editorial, produzindo capas para livros e revistas (aliás, excelentes). Ainda em 1950, artistas da qualidade de Mira Schendel (presente nesta 9a Bienal) não conseguiam espaço para desenvolver seus trabalhos – no caso, ela teve de se mudar para São Paulo.
A aceitação tardia da arte moderna trouxe uma grande defasagem também na formação e aceitação da arte contemporânea. É possível até hoje ler nos jornais críticas vazias às bienais de Porto Alegre, de “notórios especialistas” da cidade que se orgulham de dizer que não foram ver, mas que... E segue o argumento renovado da arte degenerada, contrária às Belas Artes! Apesar disso, em oito edições a Bienal do Mercosul construiu um enorme público, trouxe para professores e alunos, da rede pública e privada, uma arte muito além dos livrinhos temáticos para colorir. A arte é mais do que comemorar o dia da Pátria, o dia do Índio ou o dia dos Pais. Crianças de 10 anos transitam pela Bienal com familiaridade, por já terem ido lá, nos armazéns à beira do Rio Guaíba, duas ou três vezes. O contato contínuo com a mostra, a força do projeto educativo e do conjunto de atrações que são associadas ao evento se traduz em formação de público e em gosto pela arte. E talvez este tenha de ser mesmo o principal objetivo de uma bienal.
A Bienal este ano infelizmente não ocupa os armazéns do Cais do Porto, como de costume, por conta do (não)início das obras de revitalização do porto, projeto que se arrasta por anos e que nunca efetivamente acontece. As exposições ocupam a Usina do Gasômetro, como nas primeiras edições, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), o Santander Cultural e, pela primeira vez, o belo prédio do Memorial do Rio Grande do Sul. Outras ações acontecem no Teatro Bruno Kiefer, na Fundação Vera Chaves Barcellos e na Ilha das Pedras Brancas (conhecida como Ilha do Presídio), localizada no lago Guaíba.
A Ilha das Pedras Brancas serve de plataforma para palestras com intelectuais de diversas áreas, que têm produzido também textos reflexivos, disponíveis online para o público (http://9bienalmercosul.art.br/es/encuentros-en-la-isla/). Para a curadoria, a Ilha é um local isolado para a reflexão, simboliza a “extemporalidade da invenção”; algo fora de seu tempo que pode ser recuperado e exposto na contemporaneidade. Ideias, obras ou invenções que, no passado, não puderam ser terminadas, não puderam ser conservadas ou não tiveram aceitação, hoje podem ser recuperadas. Esta Bienal propõe o comissionamento de alguns projetos que foram originados desde os anos 1960, mas que, de alguma maneira, não puderam se materializar (a exemplo da obra Bat Cave, de Tony Smith). Creio que haja aqui uma forte relação com as “sentenças narrativas” de Arthur Danto, que, a partir de Wölfflin, fala das limitações das contingências históricas, do conhecimento narrativo pregresso e do desconhecimento da história futura, que impediram que determinadas invenções e obras de arte fossem aceitas em determinada época, simplesmente porque seu público não estava preparado para compreendê-las. Em outras palavras, podemos dizer que o clima não era favorável.
A cidade de Porto Alegre tem tido, nos últimos anos, ótimas edições da Bienal, particularmente podemos citar a 6a, sob a curadoria-geral do venezuelano Gabriel Pérez-Barreiro, e a 8a, sob a curadoria-geral do colombiano José Roca. Com essas duas bienais o nível conceitual e museológico da mostra subiu muito, as discussões se adensaram e a Bienal do Mercosul passou a integrar, de maneira muito consistente, o cotidiano da cidade. Com a natureza da cidade (nos dois sentidos do termo).
Esse ano são expostos cerca de 60 artistas, de 26 países. Creio que o número mais reduzido de artistas já é um bom indicativo de maturidade. Bienais com 150 ou 170 artistas dão uma boa ideia da produção de um determinado período, mas cansam o público que, a certa altura, não consegue apreender os trabalhos da melhor maneira. A ânsia por tentar ver toda a mostra, a maratona física de percorrer obras e mais obras, prédios e mais prédios, exige uma disponibilidade que nem sempre o espectador possui. Mas essa edição ainda mantêm um problema de edições passadas: o número exagerado de curadores, ao contrário do que se pensa, enfraquece os conteúdos que norteiam o conceito geral do tema proposto. E, para um tema tão amplo, algumas vezes propositalmente vago, é difícil compreender a necessidade, por exemplo, de quatro “curadores da nuvem”. Por outro lado, a importância dada ao educativo – como foi feito na 6a Bienal com Luis Camnitzer e na 8a Bienal com Pablo Helguera – traz esse ano a própria Mônica Hoff à curadoria da exposição, confirmando a consistência de seu projeto pedagógico. Insisto nisso porque não há fruição sem educação.
Os projetos e palestras que fazem parte dos chamados “Portais, previsões e arquipélagos”, “Encontros na Ilha” e “Redes de Formação” configuram uma natureza muito diferente da de bienais anteriores, seja pela amplitude dos temas, seja pela amplitude dos participantes (http://9bienalmercosul.art.br/es/). Se a arte contemporânea pode ser produzida a partir de qualquer elemento do mundo, agora, com a participação de todos, essa integração pode fazer mais sentido para o público leigo. Cria-se uma relação não apenas museal e pedagógica com a população, mas muito mais próxima, afetiva (ou melhor seria dizer, afetual) com todos que vierem participar dela. A Bienal do Mercosul diz que quer “afetar e criar afeto”, e isso é um discurso muito diferente do que geralmente vemos em exposições bienais. Por seu conjunto de ideias – múltiplas, complementares e dialógicas – essa 9a edição da Bienal é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre a arte, mas também sobre o tempo e o espaço em que vivemos. Si el tiempo lo permite.
Alexandre Dias Ramos
Ao observar o clima, geralmente nos enganamos. O que aparentemente parece calmo, pode logo se transformar em tormenta ou um céu muito cinza e denso pode se abrir azul como anil. A 9a edição da Bienal do Mercosul, que acontece em Porto Alegre entre os dias 13 de setembro e 10 de novembro de 2013, traz o tema Si el tiempo lo permite [em português, Se o clima for favorável], ou seja, mais do que tudo, está a mercé da natureza (humana, climática, imaginativa). Esta Bienal fala do meio ambiente num sentido amplo, técnico, poético e até mesmo exotérico, considerando muitas áreas que geralmente não são contempladas pelas artes plásticas. A verdade é que, ao observar o clima, geralmente são reveladas boas surpresas.
A mexicana Sofía Hernández Chong Cuy é a curadora-geral, Mônica Hoff, há anos dedicada ao consistente educativo da Bienal do Mercosul, este ano é a curadora de base e responsável pelo programa Redes de Formação; Raimundas Malašauskas é o curador do tempo, Bernardo de Souza o curador do espaço e Sarah Demeuse, Daniela Pérez, Júlia Rebouças e Dominic Willsdon são os curadores da nuvem.
Nuvem é também o nome da publicação de lançamento dessa Bienal, um pequeno livro que reúne ensaios como “O romance da Lua”, de Julio Verne; “A ciência e a ética da curiosidade”, de Sundar Sarukkai; “Sobre a importância dos desastres naturais”, de Walter de Maria, e uma entrevista com Eduardo Viveiros de Castro, dentre outros excelentes textos. O livro sinaliza a proposta de integrar mais fortemente a arte com as mais diversas disciplinas, pensando a produção dos artistas de maneira transversal. A Bienal apresenta a arte “como portais para outros mundos – imaginações, explorações e manifestações do que está abaixo e acima do plano social”, focando na interação entre cultura e natureza. Cultura não apenas entendida como arte, mas como o conjunto múltiplo da produção humana, das invenções, do avanço tecnológico, das ficções, dos deslocamentos sociais, da produção criada por historiadores, geógrafos, astrônomos, biólogos, navegadores e também por artistas. A natureza entendida como cultura.
Paisagem é aquilo que a vista alcança, ou, mais completamente, aquilo que a nossa mente nos faz ver. Temos os campos, as árvores, as montanhas, mas também toda a cidade, o movimento das ruas, o comércio, as relações sociais e as infovias que perfazem nosso olhar sobre o mundo. E o nosso mundo é somado aos dos outros, formando uma paisagem que não é mais tátil, não é exatamente visível, mas que configura um determinado ambiente. Segundo Sofía, a ideia “é descobrir recursos naturais e materiais culturais sob uma nova ótica, especulando as bases que têm marcado as distinções entre a descoberta e a invenção”, identificando e propondo sistemas de crenças mutáveis. “Com um enfoque abertamente contingente aos distúrbios atmosféricos, esse processo envolve diálogos constantes sobre o que é imaginário e o que é real.”
Artistas, intelectuais e curiosos trazem discussões “impossíveis”, hiperbólicas, advindas de ciências antigas ou ficcionais, com resultados impensáveis, monumentais ou invisíveis. Ora, nada mais familiar para uma Bienal chamada “do Mercosul”, um pseudo-bloco econômico tão monumental quanto invisível. Aliás, os moradores dessa região do Brasil estão muito acostumados a conviver com o universo da ficção – e esse é um dado que considero importante na integração com o tema dessa Bienal –, tendo seu cotidiano transformado constantemente por uma ideia ficcional (e aficionada) de “nação”, de terra prometida, de lugar onde tudo acontece de melhor no melhor dos mundos. Pouco importam as mazelas das gentes, a ignorância política, o descaso com a educação e a saúde e o abandono da estrutura pública, o gaúcho do Rio Grande do Sul tem sempre a visão de que ali é o melhor lugar do mundo. De seu mundo, sem dúvida, haja vista que costumamos amar a terra onde nascemos. Mas há, no sul do Brasil, uma espécie de cosmogonia de um povo idílico (forte e orgulhoso) que impede que a população enxergue que seu mundo faz parte de outros, faz parte do Brasil e faz parte da América Latina, o que torna, sem dúvida, ainda mais abstrata a ideia de Mercosul.
Acostumado a ver o que quer, o morador de Porto Alegre tem a ficção arraigada ao seu cotidiano, e talvez o melhor exemplo seja justamente o geográfico. A cidade, nascida à beira do lago Guaíba, por alguns erros de documentação histórica, acabou por considerar o Guaíba um rio. E lá há a avenida Beira Rio, o Estádio Beira Rio e todo um universo cultural de canções, poesias, pinturas, gravuras e mapas que enaltecem o chamado Rio Guaíba. Geógrafos e geólogos já provaram que ali repousa um lago, mas a população resiste: olha para o lago e enxerga o rio. E isso é muito bonito, porque mostra que o imaginário está sobreposto à realidade. A realidade ali é outra. E acho que é nesse ponto que torna tão acertado o tema da 9a Bienal numa cidade como Porto Alegre.
Devemos também lembrar da importância da Bienal para a formação do público de arte da região: desde 1997 há um intenso contato da população com a arte contemporânea e com os projetos educativos desenvolvidos a partir de cada edição. A Fundação Bienal do Mercosul tem, ao longo dos anos, especializado e ampliado suas ações educativas, com a produção de material para professores de ensino da rede pública, extenso curso de formação para monitores e intercâmbio com instituições culturais do interior do estado, com seminários, residências e mostras itinerantes. Quase duas décadas depois, o resultado é, sem dúvida, animador. O público crescente de jovens e adultos mostra que, a cada edição, são desfeitas algumas das barreiras para o acesso à arte contemporânea.
O mesmo enaltecimento cego que valoriza e preserva a cultura da região impediu, por muitos anos, que a arte moderna pudesse se estabelecer. Quando, nos idos da década de 1930, alguns artistas tentaram pintar de maneira “futurista” (como era comum chamar genericamente a arte moderna), foram ferozmente criticados e combatidos, pois, para a sociedade da época, manter a tradição significava igualmente manter o academicismo, e a arte moderna representava a degeneração – e uso aqui essa palavra de maneira proposital – da tradição. Foram criadas inclusive associações para combater esse tipo de arte. Nos anos 1940, muitos artistas encontraram um modo de exercer a criação modernista somente no campo editorial, produzindo capas para livros e revistas (aliás, excelentes). Ainda em 1950, artistas da qualidade de Mira Schendel (presente nesta 9a Bienal) não conseguiam espaço para desenvolver seus trabalhos – no caso, ela teve de se mudar para São Paulo.
A aceitação tardia da arte moderna trouxe uma grande defasagem também na formação e aceitação da arte contemporânea. É possível até hoje ler nos jornais críticas vazias às bienais de Porto Alegre, de “notórios especialistas” da cidade que se orgulham de dizer que não foram ver, mas que... E segue o argumento renovado da arte degenerada, contrária às Belas Artes! Apesar disso, em oito edições a Bienal do Mercosul construiu um enorme público, trouxe para professores e alunos, da rede pública e privada, uma arte muito além dos livrinhos temáticos para colorir. A arte é mais do que comemorar o dia da Pátria, o dia do Índio ou o dia dos Pais. Crianças de 10 anos transitam pela Bienal com familiaridade, por já terem ido lá, nos armazéns à beira do Rio Guaíba, duas ou três vezes. O contato contínuo com a mostra, a força do projeto educativo e do conjunto de atrações que são associadas ao evento se traduz em formação de público e em gosto pela arte. E talvez este tenha de ser mesmo o principal objetivo de uma bienal.
A Bienal este ano infelizmente não ocupa os armazéns do Cais do Porto, como de costume, por conta do (não)início das obras de revitalização do porto, projeto que se arrasta por anos e que nunca efetivamente acontece. As exposições ocupam a Usina do Gasômetro, como nas primeiras edições, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), o Santander Cultural e, pela primeira vez, o belo prédio do Memorial do Rio Grande do Sul. Outras ações acontecem no Teatro Bruno Kiefer, na Fundação Vera Chaves Barcellos e na Ilha das Pedras Brancas (conhecida como Ilha do Presídio), localizada no lago Guaíba.
A Ilha das Pedras Brancas serve de plataforma para palestras com intelectuais de diversas áreas, que têm produzido também textos reflexivos, disponíveis online para o público (http://9bienalmercosul.art.br/es/encuentros-en-la-isla/). Para a curadoria, a Ilha é um local isolado para a reflexão, simboliza a “extemporalidade da invenção”; algo fora de seu tempo que pode ser recuperado e exposto na contemporaneidade. Ideias, obras ou invenções que, no passado, não puderam ser terminadas, não puderam ser conservadas ou não tiveram aceitação, hoje podem ser recuperadas. Esta Bienal propõe o comissionamento de alguns projetos que foram originados desde os anos 1960, mas que, de alguma maneira, não puderam se materializar (a exemplo da obra Bat Cave, de Tony Smith). Creio que haja aqui uma forte relação com as “sentenças narrativas” de Arthur Danto, que, a partir de Wölfflin, fala das limitações das contingências históricas, do conhecimento narrativo pregresso e do desconhecimento da história futura, que impediram que determinadas invenções e obras de arte fossem aceitas em determinada época, simplesmente porque seu público não estava preparado para compreendê-las. Em outras palavras, podemos dizer que o clima não era favorável.
A cidade de Porto Alegre tem tido, nos últimos anos, ótimas edições da Bienal, particularmente podemos citar a 6a, sob a curadoria-geral do venezuelano Gabriel Pérez-Barreiro, e a 8a, sob a curadoria-geral do colombiano José Roca. Com essas duas bienais o nível conceitual e museológico da mostra subiu muito, as discussões se adensaram e a Bienal do Mercosul passou a integrar, de maneira muito consistente, o cotidiano da cidade. Com a natureza da cidade (nos dois sentidos do termo).
Esse ano são expostos cerca de 60 artistas, de 26 países. Creio que o número mais reduzido de artistas já é um bom indicativo de maturidade. Bienais com 150 ou 170 artistas dão uma boa ideia da produção de um determinado período, mas cansam o público que, a certa altura, não consegue apreender os trabalhos da melhor maneira. A ânsia por tentar ver toda a mostra, a maratona física de percorrer obras e mais obras, prédios e mais prédios, exige uma disponibilidade que nem sempre o espectador possui. Mas essa edição ainda mantêm um problema de edições passadas: o número exagerado de curadores, ao contrário do que se pensa, enfraquece os conteúdos que norteiam o conceito geral do tema proposto. E, para um tema tão amplo, algumas vezes propositalmente vago, é difícil compreender a necessidade, por exemplo, de quatro “curadores da nuvem”. Por outro lado, a importância dada ao educativo – como foi feito na 6a Bienal com Luis Camnitzer e na 8a Bienal com Pablo Helguera – traz esse ano a própria Mônica Hoff à curadoria da exposição, confirmando a consistência de seu projeto pedagógico. Insisto nisso porque não há fruição sem educação.
Os projetos e palestras que fazem parte dos chamados “Portais, previsões e arquipélagos”, “Encontros na Ilha” e “Redes de Formação” configuram uma natureza muito diferente da de bienais anteriores, seja pela amplitude dos temas, seja pela amplitude dos participantes (http://9bienalmercosul.art.br/es/). Se a arte contemporânea pode ser produzida a partir de qualquer elemento do mundo, agora, com a participação de todos, essa integração pode fazer mais sentido para o público leigo. Cria-se uma relação não apenas museal e pedagógica com a população, mas muito mais próxima, afetiva (ou melhor seria dizer, afetual) com todos que vierem participar dela. A Bienal do Mercosul diz que quer “afetar e criar afeto”, e isso é um discurso muito diferente do que geralmente vemos em exposições bienais. Por seu conjunto de ideias – múltiplas, complementares e dialógicas – essa 9a edição da Bienal é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre a arte, mas também sobre o tempo e o espaço em que vivemos. Si el tiempo lo permite.
Alexandre Dias Ramos