Sumário do livro:
Introdução
I - Arte e jogo social
II - Da distinção à abertura, e vice-versa
III - O fluxo da vida cotidiana
IV - Aberturas contemporâneas
Conclusão
Referências das imagens
Bibliografia
Texto de Introdução do livro Mídia e Arte
Ao propor uma análise sobre a arte pós-moderna, abordando o espaço existente entre a produção e a recepção da obra de arte na experiência cotidiana, é preciso esclarecer a respeito das relações de poder e distinção de classe existentes na dinâmica das artes plásticas e seus dispositivos de extensão, circulação e preservação social, assim como é preciso mostrar a influência dos gostos e valores pessoais dos diversos públicos inseridos nesse contexto. Seja por interesses econômicos, pessoais ou coletivos, técnicos ou estéticos, o conhecimento sobre a produção cultural é indispensável para uma reflexão da sociedade contemporânea. A arte cumpre um papel fundamental nesse contexto, pois envolve a cultura local e mundial, trabalhando e estimulando um modo específico de educação, invariavelmente diluída no dia-a-dia das pessoas e dos grupos. É para esse dia-a-dia que devemos nos voltar.
Torna-se cada vez mais importante olharmos para o fluxo da vida cotidiana, para a vida que passa por nossa janela, para os encontros e desencontros das ruas, das galerias, dos shopping centers; assim, poderemos entender melhor como a produção simbólica pós-moderna se dá, e como seus sinais se articulam, formando conjuntos de experiências culturais tão híbridas. Quando digo “olharmos” não me refiro simplesmente ao exercício óptico do corpo, mas a um outro modo de apreensão do entorno que inclui a visão de mundo de cada um e de cada estrutura social.
Assim como é preciso olhar para as novas alternativas que a pós-modernidade ofereceu à divisão alta- cultura/cultura popular, à hiper-realidade e à cultura do espetáculo, pautadas na junção arte/vida que a sociedade do consumo constituiu – entendendo pós-modernidade como um conjunto de processos em curso no âmbito das relações intergrupais, em toda sua potência multidisciplinar, polissêmica, híbrida, caótica e desconstrutiva.1 São todos ingredientes importantes para se entender como a produção da arte e da mídia podem ser incorporadas pela educação, revitalizando-a e aproximando-a da dinâmica social contemporânea.2
Da mesma maneira que a arte, a educação atual deve ser pensada não mais sob um viés determinado e determinista, fixo, racional e progressivo, mas sob os diversos aspectos e formas que a pós-modernidade proporciona. Uma educação ativada pela percepção complexa do mundo – das cidades, das pessoas que andam pelas ruas, dos cartazes, livros, anúncios de jornais e revistas, programas de TV, shows, shopping centers, museus e da própria escola –, numa relação mais próxima e intensa com essa paisagem, incorporando-a ao repertório pedagógico que lhe é próprio, em sinergia com os meios de comunicação. A educação é, portanto, aqui entendida como um contínuo exercício cotidiano, um trajeto construído pela experiência da vida, e não apenas pela aquisição formal de conhecimentos. Paisagem pós-moderna. Assim, a educação acontece a todo o momento, e é parte e reflexo do corpo social.
1. Mike Featherstone aponta um problema com a tentativa de definir o pós-modernismo: o fato de o termo significar coisas diferentes em cada campo específico. Porém, na minha opinião, essa pluralidade de definições tampouco representa um problema, uma vez que a pós- modernidade ganha muito mais tendo definições tão múltiplas quanto suas práticas. Mas a intenção aqui não é definir pós-modernismo e sim explicitar a relevância de sua discussão para a produção e fruição do conhecimento.
2. De longe, sabemos da dificuldade da educação em adequar seus conteúdos às práticas da vida corrente, da dificuldade em aplicar seus discursos genéricos à multiplicidade de culturas e grupos contemporâneos. E o campo pedagógico sofre muito por se apresentar tão inadequado ao seu projeto racional de padronização social e formação consensual para a realidade de hoje.
Como a cartilha e os cadernos escolares dividiram espaço com as revistas, os jogos eletrônicos e a televisão? Vale mais estudar física ou assistir ao jogo de futebol, vale mais Shakespeare ou Silvio Santos? O desfile de carnaval ou o desfile Chanel, o Rambo ou o Potemkin, o Botero ou o Zurbarán?
A relação da educação com a arte é fundamental para a compreensão dessas questões, que, aliás, não devem ser exatamente respondidas, mas incorporadas ao repertório do conhecimento. Como ensina Regina Machado, devemos sempre ir atrás das perguntas e não das respostas; com o tempo, naturalmente, as perguntas mudam. Devemos aprender a perguntar. As respostas virão da experiência particular de cada um com cada coisa, considerando a rica multiplicidade dos significados. Porque não basta “defender a elaboração de linguagens contemporâneas sem simultaneamente viabilizar leituras contemporâneas” (Zílio et al, 2001: 196).3 A arte cumpre um papel decisivo para estimular os indivíduos e grupos, inseridos em seus diversos contextos sociais, na percepção de diversas leituras e na ativação do pensamento, num universo cada vez mais imagético, midiático e simbólico. Tal universo não se apresenta, algumas vezes, de forma explícita, pois a percepção da imagem transita entre o consciente e o inconsciente, o olho e a mente, fazendo parte de um conjunto complexo de sensibilidades, e de uma aprendizagem não-formal adquirida com a experiência pessoal e significativa da própria imagem. Em meio à realidade (ou hiper- realidade),4 o indivíduo tem dificuldade em juntar o que é cultural, no sentido mais tradicional do termo, ao que é comercial e publicitário – ou, o que é pior, tenta distinguir e separar um do outro. Esforço inútil. Não há mais um modelo que estabeleça qual a realidade correta a ser seguida; desapareceram as balizas orientadoras do percurso racional, que pretendia chegar no enquadramento “eficiente” das ações do sujeito no corpo social. “À nova inscrição da produção artística corresponde um novo espaço estético, onde tudo pode surgir, tudo pode relacionar-se com tudo em jogo permanente.” (Favaretto, 1991a: 62) E na mistura quase indistinta entre arte e não-arte, produto e não-produto, o poder de ação de todos esses elementos fica aparentemente minimizado, passando desapercebido ou sendo desconsiderado pela educação formal: eis o problema.
O cotidiano, a educação e a cultura estão completamente imbricados, mas essa relação é comumente ignorada pelos sistemas estagnados de ensino. A “didática” separação entre eles pode esconder seus efeitos sociais. As diferenças de classe, a discriminação, o preconceito e a intolerância são alguns dos efeitos causados pela cegueira em relação ao outro, em relação à produção cultural do dia-a-dia, aos caminhos e desvios que cada pessoa experimenta no fluxo da vida cotidiana. A educação não só está ligada à vida, como deve ser seu espelho, na imagem de cada acontecimento, cada descoberta; na manifestação da arte, da música, da escrita, do outdoor e do vendedor ambulante. Não deve ser a cartilha, o manual, para uma “atuação competente e bem-sucedida” na vida, como um projeto técnico, mas deve incorporar organicamente a dinâmica da vida e da produção simbólica cotidiana.
A paisagem pós-moderna dá abertura e condição para esse olhar. Paisagem não é a terra, mas a visão que se tem dela, o ambiente percebido e experienciado. A própria idéia de paisagem pressupõe
3. “A reflexão sobre o que pode ser denominado ‘contemporâneo’ em arte não apresenta uma figura clara, com âmbitos plenamente definidos; é simplesmente um campo de efetuações. Pois, não se trata de entender a contemporaneidade artística e cultural como uma época, ou mesmo como uma tendência determinada, mas sim como um modo (da sensibilidade, do pensamento, da enunciação).” (Favaretto, 1991a: 60)
4. Noção criada por Jean Baudrillard, que considera a multiplicidade e intensidade das imagens (da mídia, da tecnologia, dos diversos canais comunicacionais), e a contraditoriedade de seus vetores de força, que muitas vezes se anulam, criando uma dimensão que funde realidade e não-realidade.
um observador. E são muitos os intermediadores dessa paisagem. É através de pesquisadores, jornalistas, marqueteiros, designers e artistas que a educação se configura na estrutura do corpo social como catalisadora de relações, experiências e conteúdos. Eis os educadores. Por essa razão, é preciso dar atenção a esses agentes e intermediários culturais, que passaram – depois da disciplinar e unidimensional escola moderna – a fazer parte e atuar diretamente na educação.
A expansão dos “novos intermediários culturais”, conforme os denominou Bourdieu (1982), promoveu a ampliação do leque de bens culturais e a ruptura de algumas das antigas hierarquias pedagógicas. Os novos formadores de gosto – considerando que o gosto está diretamente ligado ao habitus5 – contribuem para criar novas condições de produção artística e intelectual, pois, na procura constante por novos bens e experiências culturais, transformam e ampliam pedagogias, diferentes modos de aprendizagem, através dos complexos processos da produção de bens simbólicos, como por exemplo a difusão e recepção da arte pela mídia. A linguagem pedagógica deve considerar a realidade complexa e multiforme da vida, que joga com o inconsciente e com o conjunto dos esquemas de interação construídos desde a infância, tanto por professores como por alunos, para, assim, entrar em compasso com a realidade fora dos muros da escola.
Desta maneira, devemos integrar os intermediários culturais ao “quadro docente”, porque hoje publicitários, jornalistas e curadores formam, informam, discutem, divulgam e debatem conteúdos antes restritos aos livros. A posição redentora do professor, como único agente detentor do saber, agora divide espaço com o marketing, com a televisão, com os museus e com a internet. Tal consciência não destitui o professor de sua função – ou seu valor –, mas, ao contrário, o integra a um campo muito maior, o faz pensar- junto e ensinar-junto com outras pessoas com outras experiências.6
No uso da mídia como “instrumento de educação” para públicos mais amplos, para novos públicos consumidores de arte, existem inúmeras questões envolvidas, na maioria das vezes ligadas à configuração da sociedade. Neste sentido, a internet, por exemplo, constitui para a “sociedade da informação” um dos fenômenos mais promissores do final do século XX; a digitalização da informação operou uma revolução profunda no mundo da comunicação, por uma ampliação extraordinária de suas redes. Para a educação, a internet permite que uma quantidade cada vez maior de informação chegue, num tempo cada vez mais curto, a uma quantidade enorme de pessoas (numa espécie de enciclopédia dinâmica e orgânica, à disposição todo o tempo e em qualquer lugar);7 para a arte, torna o conteúdo cultural cada vez mais difundido e relacional. Por essa razão, é importante detectarmos quais os mecanismos e estratégias utilizados pelos artistas e agentes culturais para conquistar espaços nessa sociedade da informação e influenciar na construção, percepção e avaliação da cultura. Pois, as “lutas de poder entre os especialistas culturais e os outros grupos de especialistas (econômicos, políticos, administrativos e intermediários culturais) influenciam nossa capacidade de monopolizar e desmonopolizar conhecimento, meios de orientação e bens culturais” (Featherstone, 1995: 12). Percebemos, então, que
5. Sistema de disposições e pré-disposições adquiridas, juízos de gosto, entre as posições e as práticas, as preferências manifestadas, as opiniões expressas do indivíduo ao longo de sua história, utilizado por Bourdieu para compreender o sentido social, que será melhor desenvolvido no capítulo I.
6. Considerando, sem dúvida, as diferenças que cada formação profissional produz.
7. Evidentemente deve-se levar em conta que a disponibilidade à internet depende de aspectos econômico-sociais, como o acesso a um microcomputador, modem, à linguagem eletrônica, à alfabetização, etc.
é o conhecimento e suas diversas formas de aprendizagem que estão em jogo: conhecimento dos novos bens, seu valor social e cultural, e a forma de utilizá-los.
“O que é a arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os críticos, os historiadores e os museólogos, os marchands, os colecionadores e especuladores. Da mesma forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia.” (Canclini, 1998: 23)
A arte e sua veiculação na mídia representa, para alguns, a oportunidade de difundir a produção de um pensamento – e o resultado que o reconhecimento dessa visibilidade proporciona se traduz na possibilidade de manter e dar continuidade à elaboração de tal pensamento –; para outros ( principalmente para a classe média e os “novos-ricos”), as revistas, jornais e programas de televisão representam o aperfeiçoamento de um modelo de transformação pessoal, como administrar propriedades e relacionamentos, como construir um estilo de vida realizador.8
A cultura é constituída pelas práticas coletivas e individuais, que são, por sua vez, constituídas por ela. Ao considerar a dinâmica das experiências e práticas culturais cotidianas, é possível entender melhor o funcionamento dos meios de transmissão e circulação junto aos diversos públicos e grupos sociais, e a ação dos agentes e educadores na contemporaneidade. É preciso olhar para os “artistas, intelectuais e acadêmicos como especialistas em produção simbólica e examinar seu relacionamento com outros especialistas simbólicos na mídia e os envolvidos em outras ocupações relacionadas com a cultura de consumo, cultura popular e moda” (Featherstone, 1995: 28); verificar a competição entre esses especialistas e os especialistas econômicos – lembrando que a cultura quase sempre está ligada à economia9 –, e a tendência de ambos em falar pela humanidade.
Tais esclarecimentos dão condições para uma melhor análise cultural, comercial e educacional da produção simbólica, que será realizada ao longo deste livro, primeiramente, através das questões ligadas às estratégias de distinção social e à dinâmica multicultural da vida cotidiana; em seguida, pela verificação de como a mídia refletiu essa multiculturalidade, proporcionando uma abertura importante para a produção de conhecimento.
No entanto, é no aspecto mercadológico que encontramos, com maior facilidade, alguns elementos importantes para a transformação da produção simbólica. Cada vez mais, a produção artística tem características de e atua como mercadoria, produto produzido, divulgado e consumido nos meios de comunicação de massa, em anúncios, em promoções, em shoppings. Tal mercadoria, quase destituída de sua sacralidade histórica, está sujeita a todos os modos de operação mercadológica que qualquer
8. É possível observar essa prática, mais explicitamente, em grupos como o Rotary Club e o Lyons Club, com seus dispositivos “comunitários” de distinção social.
9. O mercado de arte, em especial, encontra-se vinculado tanto ao mercado financeiro, quanto ao mercado tradicional de obras raras, que lida com uma economia subjetiva e especulativa. O público, como consumidor de arte – seja comprando ou visitando acervos –, deve também ter consciência de seu papel, na medida em que participa da etapa final do processo, elegendo ou renegando determinados trabalhos, e assim construindo o movimento necessário para o mercado. Sem dúvida, o mercado de arte é delicado e muitas vezes perigoso, porque cria e destrói símbolos, produz dispositivos artificiais consagratórios (salões, concursos, Bienais, artigos de jornais e revistas) próprios do jogo econômico e social.
outro produto possui, inclusive o consumo rápido, superficial e descartável.10 Mas hoje, muito mais próximo da mídia – o que significa dizer, conseqüentemente, das pessoas –, a arte faz parte do universo imagético do conjunto social de uma maneira diferente daquela dos velhos moldes clássicos, porque agora ela circula de uma maneira extremamente ampla, não mais restrita aos pequenos grupos. Quando um quadro de Picasso vai para o sabonete, quando Monet vira estampa de toalha de banho, toda a proteção que a aura da arte possuía, e que a tornava tão distante do grande público, desaparece. Ainda sim é através da aura – de seu alto valor simbólico – que se associa o objeto à sua imagem (à imagem de Picasso e Monet, e não de Fulano de Tal). A antiga proteção intocável da aura dá lugar ao câmbio irrestrito de significados.
É preciso também levar em consideração que o fato de a arte entrar para o universo mercadológico, de uma forma tão mais intensa do que nos tempos dos mecenas renascentistas, não retira dela sua qualidade e seus valores intrínsecos, adquiridos ao longo de séculos de pesquisa, técnica e história da arte. As ações de marchands, colecionadores, instituições culturais, escolas e universidades, assim como jornais e revistas especializadas, são formuladas numa complexa rede de interesses – que poderia ser chamada de mercado – responsável pela manutenção de toda a estrutura “necessária” para a arte. Essa estrutura, por se constituir de inúmeras pessoas, não contém uma linha mestra, um segmento puro e comum, mas produz formas sobrepostas de conceitos, com formas sobrepostas de atuação. A pós-modernidade, a discussão e pesquisa dos autores que tratam desse assunto, assim como a pesquisa técnica e conceitual sobre os modos de produção e exibição da arte para os diferentes públicos, permitiu a compreensão dessa pluralidade e a libertação das amarras que o pensamento racional sempre determinou.
“Sendo liberdade de qualquer obrigação, a arte é jogo; o jogo contradiz a seriedade do agir utilitário; contudo, visto que a liberdade é o valor supremo, apenas jogando é que se é realmente sério.” (Argan, 1998: 358)
Na pós-modernidade é possível o diálogo orgânico entre elementos clássicos e contemporâneos, sagrados e profanos, mercadológicos e eruditos. Tal concepção, sem dúvida, não corresponde àquilo que a alta sociedade deseja, com suas estratégias e instrumentos de distinção social, e com o uso da arte como conteúdo restrito aos iniciados (Bourdieu, 2003); porém, nada escapa à multiplicidade da vida cotidiana, dos complexos e intensos modos de produção e difusão de informações. A arte perdeu a força de sua aura, mas não desapareceu; seu valor possui, hoje, uma outra significação, aberta ao conjunto complexo que a circunscreve.11 Não foi a arte que mudou, mas sim a maneira de olhar para ela.
Essa pós-modernidade, que assinala o aumento da importância da cultura, mediante a saturação de signos, mensagens, e o envolvimento híbrido da mídia com a vida cotidiana, nos permite dizer que tudo na vida social tornou-se cultural (Jameson, 1985 & Baudrillard, 1997). Lembremos aqui de Edgar Morin, que fala da energia potencial que a informação dispõe, “imensa tanto para a ação
10. O artista, como produtor do mercado de bens simbólicos, deve ficar atento à essa nova forma de participar da cultura, acrescentando ao seu material de trabalho o consumo, e saber transformar sua produção “original” – pessoal e intransferível – em mercadoria; ter consciência, quando produz, da circulação social e econômica de seu trabalho, e entender que tudo isso é parte natural da dinâmica contemporânea.
11. “Assim como a morte de Deus não acaba com as igrejas, a provável morte da arte não gera ‘a morte do mundo da arte’.” (Canclini, 1998: 135)
como para o pensamento” (1986: 42). Por essa razão, é importante que sejam investigados os modos de transmissão e consumo, as estratégias da indústria cultural de tornar a vida um grande espetáculo, e as práticas dos especialistas simbólicos que tornam mais receptivas as sensibilidades dos indivíduos para educar e criar públicos mais amplos. “Talvez essas platéias e públicos venham a adotar práticas pós-modernas e se tornem sintonizados com as experiências pós-modernas sob a orientação de educadores produzidos por intermediários culturais e paraintelectuais. Talvez essa ‘retroalimentação’ possa transformar o pós-modernismo em realidade.” (Featherstone, 1995: 29), numa paisagem visível às práticas coletivas.
É preciso mostrar que, a partir do momento em que a cultura ganhou maior relevância econômica e social do mundo, a arte contemporânea pôde ser entendida como sinal e instrumento ativo de aprendizagem; por estimular a troca simbólica entre grupos e culturas diferentes, por estimular a percepção para novos conteúdos e novas leituras da vida social. Na verdade, tudo que está fora do sistema da arte pode ser incorporado por ela, passando a fazer parte de seu jogo. Dessa maneira, as galerias de arte, os museus e centros culturais são importantes formadores de capitais simbólicos, aliados – pelos interesses mais nobres e mais vis – a agentes e meios de comunicação capazes de transformar significativamente as sensibilidades e conteúdos do público ao seu alcance.
O objeto deste livro, portanto, está na discussão a respeito dos mecanismos e da lógica de produção, circulação e recepção da arte contemporânea, dentro e fora do mercado de arte, dentro e fora da escola. Por essa razão, interessa em muito a pesquisa relacionada com educação e arte contemporânea, educação e campo midiático, pois ela contribui para uma melhor compreensão dos modos de produção e circulação de saberes, através da ampliação ao acesso à informação, de uma maior reflexão sobre a arte e seus modos de organização simbólica, e conseqüentemente, à formação de novos públicos ligados à cultura.
Para tanto, é importante mostrar como as transformações da tecnologia permitiram o aparecimento de um sistema de arte atento às novas estruturas informacionais, capaz de absorver e produzir uma cultura contemporânea ao seu tempo. Também é necessário salientar a atuação das instituições de arte na formação do público, assim como a movimentação da alta sociedade pela preservação de sua posição social, conjuntamente à abertura que a multiplicidade de recursos, formas e leituras possibilitaram. No
“saber ou na arte, na cultura ou na educação, multiplicidade não significa imediatamente elogio da fragmentação; simples recusa da unidade para fins instrumentalizadores – narcisistas, hedonistas, comerciais, modistas, que elegem diferença e diversidade individual, social e cultural. A multiplicidade valoriza o que se passa na ‘transversal’, na associação de signos heteróclitos, implicando a heterogeneidade como relação” (Favaretto, 1994: 100).
A contradição é o eixo que deve ser ressaltado – e o veremos a todo momento nas questões que perpassam os capítulos. É preciso assumir a tensão das oposições, o fim do racionalismo, a erosão da busca por um objetivo puro e pré-determinado, porque não há mais respostas prontas, não há mais autores capazes de “pintar” a realidade. Nossa realidade depende de nosso próprio olhar, dos nossos diversos níveis de percepção, de nossa rede de relações no mundo, de nosso modo de produzir e absorver conhecimento.
Este livro pretende também mostrar que é preciso repensar a educação como sistema tradicional de transmissão cultural, que essa educação deve aprender a atuar diretamente no jogo contraditório da vida contemporânea, deve
“encontrar e assinalar as referências que impeçam as pessoas de ficar submergidas nas ondas de informações, mais ou menos efêmeras, que invadem os espaços públicos e privados e as levem a orientar-se para projetos de desenvolvimento individuais e coletivos. À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele” (Delors, 1999: 89).
A quantidade de informações que a mídia dispõe educa e aliena na mesma proporção. Aquilo que chamamos de qualidade é diariamente posta em xeque, pois é cada vez mais relativizada, como a cor, nunca pode ser considerada isoladamente, depende sempre do seu entorno. A pedagogia e seus conteúdos são como, por exemplo, um laranja, muito claro ao lado do vermelho, muito escuro ao lado do amarelo; não são melhores nem piores, mas ambos ao mesmo tempo. É “preciso preparar os professores para viverem num longo período de transição no decurso do qual a sua profissão oscilará entre imagens e definições contraditórias” (Perrenoud, 1993: 201). A pedagogia voltada para o futuro, tão cara ao projeto moderno, que acreditou que o bem-estar seria alcançado numa realidade linear e objetiva, sem dúvida, enfraqueceu.
O presenteísmo pós-moderno, as ações cotidianas, o tempo imediato da mídia, a absorção incessante de inúmeras informações, a harmonia dos contrários, são os pontos para onde devemos olhar, são o material para pintar, esculpir e arquitetar a paisagem aberta a nossa frente.
Entre a inquietação e a indiferença, a paisagem pós-moderna nos mostra que não existe mais um conjunto de classificações fixas daquilo que chamamos de cultura, de arte ou de saber. No caminho entre a produção e a recepção, e sua ligação com a arte, com a vida e com a educação, a presença da mídia, além de inevitável, pode contribuir positivamente para que o acesso às múltiplas informações da contemporaneidade amplie os modos de ver e fazer cultura.
Introdução
I - Arte e jogo social
II - Da distinção à abertura, e vice-versa
III - O fluxo da vida cotidiana
IV - Aberturas contemporâneas
Conclusão
Referências das imagens
Bibliografia
Texto de Introdução do livro Mídia e Arte
Ao propor uma análise sobre a arte pós-moderna, abordando o espaço existente entre a produção e a recepção da obra de arte na experiência cotidiana, é preciso esclarecer a respeito das relações de poder e distinção de classe existentes na dinâmica das artes plásticas e seus dispositivos de extensão, circulação e preservação social, assim como é preciso mostrar a influência dos gostos e valores pessoais dos diversos públicos inseridos nesse contexto. Seja por interesses econômicos, pessoais ou coletivos, técnicos ou estéticos, o conhecimento sobre a produção cultural é indispensável para uma reflexão da sociedade contemporânea. A arte cumpre um papel fundamental nesse contexto, pois envolve a cultura local e mundial, trabalhando e estimulando um modo específico de educação, invariavelmente diluída no dia-a-dia das pessoas e dos grupos. É para esse dia-a-dia que devemos nos voltar.
Torna-se cada vez mais importante olharmos para o fluxo da vida cotidiana, para a vida que passa por nossa janela, para os encontros e desencontros das ruas, das galerias, dos shopping centers; assim, poderemos entender melhor como a produção simbólica pós-moderna se dá, e como seus sinais se articulam, formando conjuntos de experiências culturais tão híbridas. Quando digo “olharmos” não me refiro simplesmente ao exercício óptico do corpo, mas a um outro modo de apreensão do entorno que inclui a visão de mundo de cada um e de cada estrutura social.
Assim como é preciso olhar para as novas alternativas que a pós-modernidade ofereceu à divisão alta- cultura/cultura popular, à hiper-realidade e à cultura do espetáculo, pautadas na junção arte/vida que a sociedade do consumo constituiu – entendendo pós-modernidade como um conjunto de processos em curso no âmbito das relações intergrupais, em toda sua potência multidisciplinar, polissêmica, híbrida, caótica e desconstrutiva.1 São todos ingredientes importantes para se entender como a produção da arte e da mídia podem ser incorporadas pela educação, revitalizando-a e aproximando-a da dinâmica social contemporânea.2
Da mesma maneira que a arte, a educação atual deve ser pensada não mais sob um viés determinado e determinista, fixo, racional e progressivo, mas sob os diversos aspectos e formas que a pós-modernidade proporciona. Uma educação ativada pela percepção complexa do mundo – das cidades, das pessoas que andam pelas ruas, dos cartazes, livros, anúncios de jornais e revistas, programas de TV, shows, shopping centers, museus e da própria escola –, numa relação mais próxima e intensa com essa paisagem, incorporando-a ao repertório pedagógico que lhe é próprio, em sinergia com os meios de comunicação. A educação é, portanto, aqui entendida como um contínuo exercício cotidiano, um trajeto construído pela experiência da vida, e não apenas pela aquisição formal de conhecimentos. Paisagem pós-moderna. Assim, a educação acontece a todo o momento, e é parte e reflexo do corpo social.
1. Mike Featherstone aponta um problema com a tentativa de definir o pós-modernismo: o fato de o termo significar coisas diferentes em cada campo específico. Porém, na minha opinião, essa pluralidade de definições tampouco representa um problema, uma vez que a pós- modernidade ganha muito mais tendo definições tão múltiplas quanto suas práticas. Mas a intenção aqui não é definir pós-modernismo e sim explicitar a relevância de sua discussão para a produção e fruição do conhecimento.
2. De longe, sabemos da dificuldade da educação em adequar seus conteúdos às práticas da vida corrente, da dificuldade em aplicar seus discursos genéricos à multiplicidade de culturas e grupos contemporâneos. E o campo pedagógico sofre muito por se apresentar tão inadequado ao seu projeto racional de padronização social e formação consensual para a realidade de hoje.
Como a cartilha e os cadernos escolares dividiram espaço com as revistas, os jogos eletrônicos e a televisão? Vale mais estudar física ou assistir ao jogo de futebol, vale mais Shakespeare ou Silvio Santos? O desfile de carnaval ou o desfile Chanel, o Rambo ou o Potemkin, o Botero ou o Zurbarán?
A relação da educação com a arte é fundamental para a compreensão dessas questões, que, aliás, não devem ser exatamente respondidas, mas incorporadas ao repertório do conhecimento. Como ensina Regina Machado, devemos sempre ir atrás das perguntas e não das respostas; com o tempo, naturalmente, as perguntas mudam. Devemos aprender a perguntar. As respostas virão da experiência particular de cada um com cada coisa, considerando a rica multiplicidade dos significados. Porque não basta “defender a elaboração de linguagens contemporâneas sem simultaneamente viabilizar leituras contemporâneas” (Zílio et al, 2001: 196).3 A arte cumpre um papel decisivo para estimular os indivíduos e grupos, inseridos em seus diversos contextos sociais, na percepção de diversas leituras e na ativação do pensamento, num universo cada vez mais imagético, midiático e simbólico. Tal universo não se apresenta, algumas vezes, de forma explícita, pois a percepção da imagem transita entre o consciente e o inconsciente, o olho e a mente, fazendo parte de um conjunto complexo de sensibilidades, e de uma aprendizagem não-formal adquirida com a experiência pessoal e significativa da própria imagem. Em meio à realidade (ou hiper- realidade),4 o indivíduo tem dificuldade em juntar o que é cultural, no sentido mais tradicional do termo, ao que é comercial e publicitário – ou, o que é pior, tenta distinguir e separar um do outro. Esforço inútil. Não há mais um modelo que estabeleça qual a realidade correta a ser seguida; desapareceram as balizas orientadoras do percurso racional, que pretendia chegar no enquadramento “eficiente” das ações do sujeito no corpo social. “À nova inscrição da produção artística corresponde um novo espaço estético, onde tudo pode surgir, tudo pode relacionar-se com tudo em jogo permanente.” (Favaretto, 1991a: 62) E na mistura quase indistinta entre arte e não-arte, produto e não-produto, o poder de ação de todos esses elementos fica aparentemente minimizado, passando desapercebido ou sendo desconsiderado pela educação formal: eis o problema.
O cotidiano, a educação e a cultura estão completamente imbricados, mas essa relação é comumente ignorada pelos sistemas estagnados de ensino. A “didática” separação entre eles pode esconder seus efeitos sociais. As diferenças de classe, a discriminação, o preconceito e a intolerância são alguns dos efeitos causados pela cegueira em relação ao outro, em relação à produção cultural do dia-a-dia, aos caminhos e desvios que cada pessoa experimenta no fluxo da vida cotidiana. A educação não só está ligada à vida, como deve ser seu espelho, na imagem de cada acontecimento, cada descoberta; na manifestação da arte, da música, da escrita, do outdoor e do vendedor ambulante. Não deve ser a cartilha, o manual, para uma “atuação competente e bem-sucedida” na vida, como um projeto técnico, mas deve incorporar organicamente a dinâmica da vida e da produção simbólica cotidiana.
A paisagem pós-moderna dá abertura e condição para esse olhar. Paisagem não é a terra, mas a visão que se tem dela, o ambiente percebido e experienciado. A própria idéia de paisagem pressupõe
3. “A reflexão sobre o que pode ser denominado ‘contemporâneo’ em arte não apresenta uma figura clara, com âmbitos plenamente definidos; é simplesmente um campo de efetuações. Pois, não se trata de entender a contemporaneidade artística e cultural como uma época, ou mesmo como uma tendência determinada, mas sim como um modo (da sensibilidade, do pensamento, da enunciação).” (Favaretto, 1991a: 60)
4. Noção criada por Jean Baudrillard, que considera a multiplicidade e intensidade das imagens (da mídia, da tecnologia, dos diversos canais comunicacionais), e a contraditoriedade de seus vetores de força, que muitas vezes se anulam, criando uma dimensão que funde realidade e não-realidade.
um observador. E são muitos os intermediadores dessa paisagem. É através de pesquisadores, jornalistas, marqueteiros, designers e artistas que a educação se configura na estrutura do corpo social como catalisadora de relações, experiências e conteúdos. Eis os educadores. Por essa razão, é preciso dar atenção a esses agentes e intermediários culturais, que passaram – depois da disciplinar e unidimensional escola moderna – a fazer parte e atuar diretamente na educação.
A expansão dos “novos intermediários culturais”, conforme os denominou Bourdieu (1982), promoveu a ampliação do leque de bens culturais e a ruptura de algumas das antigas hierarquias pedagógicas. Os novos formadores de gosto – considerando que o gosto está diretamente ligado ao habitus5 – contribuem para criar novas condições de produção artística e intelectual, pois, na procura constante por novos bens e experiências culturais, transformam e ampliam pedagogias, diferentes modos de aprendizagem, através dos complexos processos da produção de bens simbólicos, como por exemplo a difusão e recepção da arte pela mídia. A linguagem pedagógica deve considerar a realidade complexa e multiforme da vida, que joga com o inconsciente e com o conjunto dos esquemas de interação construídos desde a infância, tanto por professores como por alunos, para, assim, entrar em compasso com a realidade fora dos muros da escola.
Desta maneira, devemos integrar os intermediários culturais ao “quadro docente”, porque hoje publicitários, jornalistas e curadores formam, informam, discutem, divulgam e debatem conteúdos antes restritos aos livros. A posição redentora do professor, como único agente detentor do saber, agora divide espaço com o marketing, com a televisão, com os museus e com a internet. Tal consciência não destitui o professor de sua função – ou seu valor –, mas, ao contrário, o integra a um campo muito maior, o faz pensar- junto e ensinar-junto com outras pessoas com outras experiências.6
No uso da mídia como “instrumento de educação” para públicos mais amplos, para novos públicos consumidores de arte, existem inúmeras questões envolvidas, na maioria das vezes ligadas à configuração da sociedade. Neste sentido, a internet, por exemplo, constitui para a “sociedade da informação” um dos fenômenos mais promissores do final do século XX; a digitalização da informação operou uma revolução profunda no mundo da comunicação, por uma ampliação extraordinária de suas redes. Para a educação, a internet permite que uma quantidade cada vez maior de informação chegue, num tempo cada vez mais curto, a uma quantidade enorme de pessoas (numa espécie de enciclopédia dinâmica e orgânica, à disposição todo o tempo e em qualquer lugar);7 para a arte, torna o conteúdo cultural cada vez mais difundido e relacional. Por essa razão, é importante detectarmos quais os mecanismos e estratégias utilizados pelos artistas e agentes culturais para conquistar espaços nessa sociedade da informação e influenciar na construção, percepção e avaliação da cultura. Pois, as “lutas de poder entre os especialistas culturais e os outros grupos de especialistas (econômicos, políticos, administrativos e intermediários culturais) influenciam nossa capacidade de monopolizar e desmonopolizar conhecimento, meios de orientação e bens culturais” (Featherstone, 1995: 12). Percebemos, então, que
5. Sistema de disposições e pré-disposições adquiridas, juízos de gosto, entre as posições e as práticas, as preferências manifestadas, as opiniões expressas do indivíduo ao longo de sua história, utilizado por Bourdieu para compreender o sentido social, que será melhor desenvolvido no capítulo I.
6. Considerando, sem dúvida, as diferenças que cada formação profissional produz.
7. Evidentemente deve-se levar em conta que a disponibilidade à internet depende de aspectos econômico-sociais, como o acesso a um microcomputador, modem, à linguagem eletrônica, à alfabetização, etc.
é o conhecimento e suas diversas formas de aprendizagem que estão em jogo: conhecimento dos novos bens, seu valor social e cultural, e a forma de utilizá-los.
“O que é a arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os críticos, os historiadores e os museólogos, os marchands, os colecionadores e especuladores. Da mesma forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia.” (Canclini, 1998: 23)
A arte e sua veiculação na mídia representa, para alguns, a oportunidade de difundir a produção de um pensamento – e o resultado que o reconhecimento dessa visibilidade proporciona se traduz na possibilidade de manter e dar continuidade à elaboração de tal pensamento –; para outros ( principalmente para a classe média e os “novos-ricos”), as revistas, jornais e programas de televisão representam o aperfeiçoamento de um modelo de transformação pessoal, como administrar propriedades e relacionamentos, como construir um estilo de vida realizador.8
A cultura é constituída pelas práticas coletivas e individuais, que são, por sua vez, constituídas por ela. Ao considerar a dinâmica das experiências e práticas culturais cotidianas, é possível entender melhor o funcionamento dos meios de transmissão e circulação junto aos diversos públicos e grupos sociais, e a ação dos agentes e educadores na contemporaneidade. É preciso olhar para os “artistas, intelectuais e acadêmicos como especialistas em produção simbólica e examinar seu relacionamento com outros especialistas simbólicos na mídia e os envolvidos em outras ocupações relacionadas com a cultura de consumo, cultura popular e moda” (Featherstone, 1995: 28); verificar a competição entre esses especialistas e os especialistas econômicos – lembrando que a cultura quase sempre está ligada à economia9 –, e a tendência de ambos em falar pela humanidade.
Tais esclarecimentos dão condições para uma melhor análise cultural, comercial e educacional da produção simbólica, que será realizada ao longo deste livro, primeiramente, através das questões ligadas às estratégias de distinção social e à dinâmica multicultural da vida cotidiana; em seguida, pela verificação de como a mídia refletiu essa multiculturalidade, proporcionando uma abertura importante para a produção de conhecimento.
No entanto, é no aspecto mercadológico que encontramos, com maior facilidade, alguns elementos importantes para a transformação da produção simbólica. Cada vez mais, a produção artística tem características de e atua como mercadoria, produto produzido, divulgado e consumido nos meios de comunicação de massa, em anúncios, em promoções, em shoppings. Tal mercadoria, quase destituída de sua sacralidade histórica, está sujeita a todos os modos de operação mercadológica que qualquer
8. É possível observar essa prática, mais explicitamente, em grupos como o Rotary Club e o Lyons Club, com seus dispositivos “comunitários” de distinção social.
9. O mercado de arte, em especial, encontra-se vinculado tanto ao mercado financeiro, quanto ao mercado tradicional de obras raras, que lida com uma economia subjetiva e especulativa. O público, como consumidor de arte – seja comprando ou visitando acervos –, deve também ter consciência de seu papel, na medida em que participa da etapa final do processo, elegendo ou renegando determinados trabalhos, e assim construindo o movimento necessário para o mercado. Sem dúvida, o mercado de arte é delicado e muitas vezes perigoso, porque cria e destrói símbolos, produz dispositivos artificiais consagratórios (salões, concursos, Bienais, artigos de jornais e revistas) próprios do jogo econômico e social.
outro produto possui, inclusive o consumo rápido, superficial e descartável.10 Mas hoje, muito mais próximo da mídia – o que significa dizer, conseqüentemente, das pessoas –, a arte faz parte do universo imagético do conjunto social de uma maneira diferente daquela dos velhos moldes clássicos, porque agora ela circula de uma maneira extremamente ampla, não mais restrita aos pequenos grupos. Quando um quadro de Picasso vai para o sabonete, quando Monet vira estampa de toalha de banho, toda a proteção que a aura da arte possuía, e que a tornava tão distante do grande público, desaparece. Ainda sim é através da aura – de seu alto valor simbólico – que se associa o objeto à sua imagem (à imagem de Picasso e Monet, e não de Fulano de Tal). A antiga proteção intocável da aura dá lugar ao câmbio irrestrito de significados.
É preciso também levar em consideração que o fato de a arte entrar para o universo mercadológico, de uma forma tão mais intensa do que nos tempos dos mecenas renascentistas, não retira dela sua qualidade e seus valores intrínsecos, adquiridos ao longo de séculos de pesquisa, técnica e história da arte. As ações de marchands, colecionadores, instituições culturais, escolas e universidades, assim como jornais e revistas especializadas, são formuladas numa complexa rede de interesses – que poderia ser chamada de mercado – responsável pela manutenção de toda a estrutura “necessária” para a arte. Essa estrutura, por se constituir de inúmeras pessoas, não contém uma linha mestra, um segmento puro e comum, mas produz formas sobrepostas de conceitos, com formas sobrepostas de atuação. A pós-modernidade, a discussão e pesquisa dos autores que tratam desse assunto, assim como a pesquisa técnica e conceitual sobre os modos de produção e exibição da arte para os diferentes públicos, permitiu a compreensão dessa pluralidade e a libertação das amarras que o pensamento racional sempre determinou.
“Sendo liberdade de qualquer obrigação, a arte é jogo; o jogo contradiz a seriedade do agir utilitário; contudo, visto que a liberdade é o valor supremo, apenas jogando é que se é realmente sério.” (Argan, 1998: 358)
Na pós-modernidade é possível o diálogo orgânico entre elementos clássicos e contemporâneos, sagrados e profanos, mercadológicos e eruditos. Tal concepção, sem dúvida, não corresponde àquilo que a alta sociedade deseja, com suas estratégias e instrumentos de distinção social, e com o uso da arte como conteúdo restrito aos iniciados (Bourdieu, 2003); porém, nada escapa à multiplicidade da vida cotidiana, dos complexos e intensos modos de produção e difusão de informações. A arte perdeu a força de sua aura, mas não desapareceu; seu valor possui, hoje, uma outra significação, aberta ao conjunto complexo que a circunscreve.11 Não foi a arte que mudou, mas sim a maneira de olhar para ela.
Essa pós-modernidade, que assinala o aumento da importância da cultura, mediante a saturação de signos, mensagens, e o envolvimento híbrido da mídia com a vida cotidiana, nos permite dizer que tudo na vida social tornou-se cultural (Jameson, 1985 & Baudrillard, 1997). Lembremos aqui de Edgar Morin, que fala da energia potencial que a informação dispõe, “imensa tanto para a ação
10. O artista, como produtor do mercado de bens simbólicos, deve ficar atento à essa nova forma de participar da cultura, acrescentando ao seu material de trabalho o consumo, e saber transformar sua produção “original” – pessoal e intransferível – em mercadoria; ter consciência, quando produz, da circulação social e econômica de seu trabalho, e entender que tudo isso é parte natural da dinâmica contemporânea.
11. “Assim como a morte de Deus não acaba com as igrejas, a provável morte da arte não gera ‘a morte do mundo da arte’.” (Canclini, 1998: 135)
como para o pensamento” (1986: 42). Por essa razão, é importante que sejam investigados os modos de transmissão e consumo, as estratégias da indústria cultural de tornar a vida um grande espetáculo, e as práticas dos especialistas simbólicos que tornam mais receptivas as sensibilidades dos indivíduos para educar e criar públicos mais amplos. “Talvez essas platéias e públicos venham a adotar práticas pós-modernas e se tornem sintonizados com as experiências pós-modernas sob a orientação de educadores produzidos por intermediários culturais e paraintelectuais. Talvez essa ‘retroalimentação’ possa transformar o pós-modernismo em realidade.” (Featherstone, 1995: 29), numa paisagem visível às práticas coletivas.
É preciso mostrar que, a partir do momento em que a cultura ganhou maior relevância econômica e social do mundo, a arte contemporânea pôde ser entendida como sinal e instrumento ativo de aprendizagem; por estimular a troca simbólica entre grupos e culturas diferentes, por estimular a percepção para novos conteúdos e novas leituras da vida social. Na verdade, tudo que está fora do sistema da arte pode ser incorporado por ela, passando a fazer parte de seu jogo. Dessa maneira, as galerias de arte, os museus e centros culturais são importantes formadores de capitais simbólicos, aliados – pelos interesses mais nobres e mais vis – a agentes e meios de comunicação capazes de transformar significativamente as sensibilidades e conteúdos do público ao seu alcance.
O objeto deste livro, portanto, está na discussão a respeito dos mecanismos e da lógica de produção, circulação e recepção da arte contemporânea, dentro e fora do mercado de arte, dentro e fora da escola. Por essa razão, interessa em muito a pesquisa relacionada com educação e arte contemporânea, educação e campo midiático, pois ela contribui para uma melhor compreensão dos modos de produção e circulação de saberes, através da ampliação ao acesso à informação, de uma maior reflexão sobre a arte e seus modos de organização simbólica, e conseqüentemente, à formação de novos públicos ligados à cultura.
Para tanto, é importante mostrar como as transformações da tecnologia permitiram o aparecimento de um sistema de arte atento às novas estruturas informacionais, capaz de absorver e produzir uma cultura contemporânea ao seu tempo. Também é necessário salientar a atuação das instituições de arte na formação do público, assim como a movimentação da alta sociedade pela preservação de sua posição social, conjuntamente à abertura que a multiplicidade de recursos, formas e leituras possibilitaram. No
“saber ou na arte, na cultura ou na educação, multiplicidade não significa imediatamente elogio da fragmentação; simples recusa da unidade para fins instrumentalizadores – narcisistas, hedonistas, comerciais, modistas, que elegem diferença e diversidade individual, social e cultural. A multiplicidade valoriza o que se passa na ‘transversal’, na associação de signos heteróclitos, implicando a heterogeneidade como relação” (Favaretto, 1994: 100).
A contradição é o eixo que deve ser ressaltado – e o veremos a todo momento nas questões que perpassam os capítulos. É preciso assumir a tensão das oposições, o fim do racionalismo, a erosão da busca por um objetivo puro e pré-determinado, porque não há mais respostas prontas, não há mais autores capazes de “pintar” a realidade. Nossa realidade depende de nosso próprio olhar, dos nossos diversos níveis de percepção, de nossa rede de relações no mundo, de nosso modo de produzir e absorver conhecimento.
Este livro pretende também mostrar que é preciso repensar a educação como sistema tradicional de transmissão cultural, que essa educação deve aprender a atuar diretamente no jogo contraditório da vida contemporânea, deve
“encontrar e assinalar as referências que impeçam as pessoas de ficar submergidas nas ondas de informações, mais ou menos efêmeras, que invadem os espaços públicos e privados e as levem a orientar-se para projetos de desenvolvimento individuais e coletivos. À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele” (Delors, 1999: 89).
A quantidade de informações que a mídia dispõe educa e aliena na mesma proporção. Aquilo que chamamos de qualidade é diariamente posta em xeque, pois é cada vez mais relativizada, como a cor, nunca pode ser considerada isoladamente, depende sempre do seu entorno. A pedagogia e seus conteúdos são como, por exemplo, um laranja, muito claro ao lado do vermelho, muito escuro ao lado do amarelo; não são melhores nem piores, mas ambos ao mesmo tempo. É “preciso preparar os professores para viverem num longo período de transição no decurso do qual a sua profissão oscilará entre imagens e definições contraditórias” (Perrenoud, 1993: 201). A pedagogia voltada para o futuro, tão cara ao projeto moderno, que acreditou que o bem-estar seria alcançado numa realidade linear e objetiva, sem dúvida, enfraqueceu.
O presenteísmo pós-moderno, as ações cotidianas, o tempo imediato da mídia, a absorção incessante de inúmeras informações, a harmonia dos contrários, são os pontos para onde devemos olhar, são o material para pintar, esculpir e arquitetar a paisagem aberta a nossa frente.
Entre a inquietação e a indiferença, a paisagem pós-moderna nos mostra que não existe mais um conjunto de classificações fixas daquilo que chamamos de cultura, de arte ou de saber. No caminho entre a produção e a recepção, e sua ligação com a arte, com a vida e com a educação, a presença da mídia, além de inevitável, pode contribuir positivamente para que o acesso às múltiplas informações da contemporaneidade amplie os modos de ver e fazer cultura.