Apresentação do livro "Sobre o Ofício do Curador"
Este livro surgiu da necessidade – ou poderíamos dizer, da falta – de publicações no
Brasil a respeito do trabalho do curador. Muito se fala nos jornais sobre uma ou outra
polêmica, algum excesso exibicionista, alguma ação entre amigos, essa ou aquela
cenografia bizarra, mas em poucos momentos temos uma leitura mais detida sobre a
profissão em si.
É difícil determinar o momento exato do nascimento de um ofício. O ofício do
curador, como tantos, surgiu pelo resultado do tempo, em lugares e momentos muito
diferentes da história. Considerando que foram poucos os que tiveram o privilégio de
escrever a história oficial contada até hoje nos livros e exposta até hoje nos museus, tais
escolhas dependeram, na maioria das vezes, dos objetivos que motivaram eleger ou
descartar determinadas produções artísticas. E o ofício do curador se refez todo o tempo,
conforme a “contação” dessa história da arte.
Então, por onde começar? Talvez pelo final do Cinquecento, com a criação da
Galeria Uffizi – considerada o primeiro museu da história –, ou talvez pela ordenação dos
objetos nos gabinetes de curiosidades ou, antes ainda, pelas próprias escolhas dos arquitetos
bizantinos. A questão poderia então incidir na denominação em si, e daí talvez optássemos
por escolher o dia e o ano em que o nome curador foi proferido pela primeira vez;
verificaríamos então sua etimologia e pesquisaríamos se os gregos já faziam uso do termo
naquele “momento clássico da história universal”. Poderíamos decidir pelo início da noção
de arte, como a entendemos hoje, ou pelo conjunto de ações que configuraram o chamado
mercado da arte, ou pela história da formação do público... e por aí vai.
Seja como for, sem uma data magna, podemos na verdade ficar um pouco mais
tranquilos e compreender que a curadoria foi tomando forma com a reprodução e reflexão
de um conjunto enorme de experiências práticas e, como tal, sendo valorizada à medida que
o mundo da arte passou a se configurar mais fortemente pela composição de diversos
agentes culturais no campo – antes atuando em posições consideradas periféricas –, como
jornalistas, críticos, professores universitários, museólogos e conservadores. Vemos isso
mais claramente a partir da segunda metade do século XIX.
Em linhas gerais, até o século XIV o valor da arte estava muito mais atrelado ao
tema do que ao artista em si – e talvez seja por isso que se tenha tanta dificuldade em
descobrir a autoria de muitos trabalhos desse período –; os séculos XV e XVI promoveram
uma mudança importante nesse sentido, passando a valorizar conjuntamente obras e artistas
(o que tornou possível, por exemplo, o nascimento da própria história da arte, por Giorgio
Vasari); dali para frente, a produção de arte foi cada vez mais valorizada, com uma
mobilidade crescente entre países e coleções, que resultou, dentre outras coisas, nas
Academias e, mais tarde, nos museus abertos ao público, tendo o Louvre (em 1793) como
marco. Os Salões de arte das Academias, realizados com regularidade a partir da década de
1670, seguiam padrões estéticos rígidos e princípios hierárquicos de disposição das obrasque
pouco tinham a ver com a organização do espaço como o pensamos hoje. Nesse sentido, a individual
de Gustave Courbet em 1855 – curada por ele mesmo – abriu caminho
para um mercado independente das regras impostas pelos Salões oficiais, que não davam
mais conta de suster as novas produções e necessidades que já se faziam sentir na recém
nascida arte moderna.
O modernismo foi revolucionário em vários aspectos, mas é preciso considerar que
se fez ainda pautado numa série de preceitos acadêmicos muito caros aos artistas, como a
pintura de cavalete e a moldura, por exemplo. A ruptura se deu em outras esferas, mas a
permanência de determinados elementos tradicionais também possibilitou repensá-los em
suas variadas funções. Ampliou-se então a reflexão a respeito do modo de pendurar os
quadros, de iluminá-los, de fazer o público circular da melhor maneira no espaço da
exposição... De modo que, entre 1890 e 1930, com a crescente valorização de cada agente
em seu “ofício”, o mercado de arte já poderia ser considerado bastante profissionalizado.
O desaparecimento do uso da moldura a partir dos anos 1950 certamente contribuiu
para uma tomada de atenção particular quanto ao espaço expositivo. Aquela parede, antes
“invisível”, exterior à moldura, agora se tornava perigosamente ativa (desejosamente ativa).
Esse diálogo entre parede e obra – que não aconteceu evidentemente só com a pintura – fez
com que a figura do curador (antes muito mais ligada à do profissional que cuidava dos
acervos) se tornasse central para o êxito de uma exposição. Como se pôde perceber, a
curadoria é um ofício antigo, mas uma profissão relativamente nova.
Para este livro, foram convidados oito pesquisadores com experiências bastante
diferentes na prática da curadoria. O objetivo foi criar uma tomada mais ampla que não
configurasse uma única categorização do assunto, mas, ao contrário, que formasse um
conjunto plural de visões, somadas às de cada leitor. No final do livro, portanto, não
teremos uma definição do curador, uma ideia acabada, mas talvez “começada” deste ofício
que está sempre sendo revisto, a cada nova exposição.
O primeiro capítulo começa com "As montagens de exposições de arte: dos Salões
de Paris ao MoMA", da pesquisadora Rejane Cintrão, que resgata alguns momentos
fundantes que construíram a ideia que temos hoje de expografia. A própria disposição dos
quadros na parede, por exemplo, possui uma história que se revela através da apresentação
de autores e imagens das primeiras exposições. Vale destacar a presença das importantes
imagens do Salon des Independents, raramente encontradas em livros, e da impressionante
reorganização do Landesmuseum feita por Alexander Dorner na década de 1920, um
paradigma do nosso modo de expor arte.
No segundo capítulo, Cauê Alves trata "A curadoria como historicidade viva", ou
seja, do questionamento à própria construção totalizadora da curadoria na história,
mostrando que o equilíbrio de forças que o trabalho do curador exige não deve se balizar
pelas necessidades do mercado ou dos patrocinadores. “É preciso também que o curador
saiba resistir a interesses vários e, ao marcar posições, evitar a máscara da neutralidade”,
potencializando a base de suas reflexões nas relações “laterais, frontais ou diagonais” que
as obras de arte suscitam em cada momento presente. Os três ensaios seguintes são estudos
de caso, ou seja, descrevem, de modos muito diferentes entre si, o trabalho de concepção de
exposições específicas.
O capítulo terceiro, chamado "Novo comportamento do Museu de Arte Contemporânea", é um pequeno,
mas muito importante, artigo publicado originalmente em 1974 na Revista Colóquio Artes, em
que Walter Zanini – maior referência da história da arte do Brasil – descreve para o público
português sua experiência com as exposições anuais chamadas JAC (Jovem Arte
Contemporânea), realizadas no MAC da Universidade de São Paulo, na década de 1970.
Uma proposta inédita de montagem museográfica, em que o museu foi transformado em
uma espécie de ateliê coletivo, orgânico e constantemente ativo, transferindo a ênfase
colocada na obra para o processo em si, sem qualquer divisão entre artistas e público.
O quarto e quinto capítulos apresentam dois estudos de caso que se relacionam pelo
olhar estrangeiro, um de fora, outro de dentro.
O capítulo escrito por Paula Braga e intitulado "O curador e a galeria" fala da exposição
"OutrasFloras", sob curadoria de José Roca, montada na Galeria Nara Roesler em 2008, que
tratou das contravenções urbanas como consequência de uma exploração colonial violenta.
Além da exposição, o texto de Paula nos traz um assunto ainda pouco estudado: os inúmeros
procedimentos necessários para a montagem de uma exposição numa galeria de arte privada.
Visitas constantes aos ateliês dos artistas, pesquisas do acervo, contatos com instituições de fora,
tratativas aduaneiras, seleção e organização de feiras internacionais, são algumas das incumbências
que mostram, antes de tudo, a importância da atividade do curador para a valorização das
obras e o bom funcionamento do mercado.
O quinto capítulo se chama "Como explicar arte contemporânea brasileira para o
público internacional", em que o crítico e historiador da arte Tadeu Chiarelli descreve todo
o desenvolvimento da curadoria da exposição Desidentidad para o Instituto Valenciano de
Arte Moderno, desde o processo de aquisição das obras pelo MAM de São Paulo – e as
relações conceituais suscitadas por cada trabalho – até a exposição propriamente dita, na
Espanha. Além de ser um extenso e rico estudo de caso, este capítulo possui uma
configuração atípica: divide-se em duas partes, sendo o segundo texto uma espécie de
reescrita do primeiro, criando assim dois tempos de uma mesma montagem. Desta forma é
possível acompanhar, junto com o autor, seu processo de elaboração.
Se a estrutura que Tadeu nos propõe é nova, a de Mabe Bethônico é ainda mais
inusitada, apresentando seu "Museu das Águas de Rio Acima" na forma de projeto para um
edital. O que pode parecer, a princípio, inadequado para o texto de um capítulo, por se
tratar de uma ficha de inscrição, transparece um rico material de análise e uma boa
oportunidade para o público leitor ter contato com uma etapa importante da produção e
reflexão curatorial. Há, no próprio projeto, questões técnicas que toda implantação
museográfica está sujeita a passar: como a necessidade de ter um prédio, a adaptação do
espaço às exposições ou a dotação orçamentária para manutenção. Enquanto este livro
estiver no prelo, na mesma ocasião, o projeto de Mabe estará sendo avaliado pela
instituição a ele destinada; o que torna a situação bastante interessante, quase ficcional, pela
formulação de algo que pode ou não vir a existir, ainda que exista definitivamente naspáginas do livro impresso. Algo absolutamente coerente com o que Mabe tem elaborado ao longo de sua trajetória como artista e pesquisadora.
O sétimo capítulo fica a cargo de Glória Ferreira; intitulado "Escolhas e experiências", trata dos interstícios que subjazem da atividade curatorial, como o título das obras e exposições, o entrelaçamento com a crítica, a dimensão pública da arte, a crise do
universalismo e as múltiplas historiografias que perfazem uma nova cartografia simbólica
da arte. Seu texto coloca o curador no papel de articulador e construtor de sentidos, “cuja
hipótese se concretiza na realidade, enquanto interação com a arte, mediação entre obra,
espaço expositivo e público”.
O livro termina reafirmando seu tema principal: o ofício do curador. Mostrando que
"Não se nasce curador, torna-se curador", Cristiana Tejo fala do interesse cada vez maior
por essa profissão “de poucos”, que proporciona viagens, prestígio e bons relacionamentos,
mas que também é cercada de inúmeras dificuldades educacionais, institucionais e
políticas, principalmente num país periférico como o Brasil. O esforço, o rigor e o bom
senso devem acompanhar o aspirante a esta carreira junto com seu principal preceito: ter
algo a dizer.
O conhecimento da maioria destes curadores brasileiros não foi adquirido nas
universidades, como alunos, mas sim pelo dia a dia de suas pesquisas de campo, pela leitura
de textos estrangeiros, pela prática como docentes e pelas exaustivas noites passadas dentro
de cubos (nem tão) brancos, mas que os anos brindaram com a chamada experiência.
A ordem de leitura dos textos, na verdade, não é tão importante. Fiz aqui minha
sugestão, e espero que o leitor encontre as suas. Se o final da leitura criar certa expectativa,
um sinal de reticências, uma necessidade de ir atrás de mais informações... que bom!
Esperamos que este seja o primeiro de muitos livros.
Alexandre Dias Ramos
Este livro surgiu da necessidade – ou poderíamos dizer, da falta – de publicações no
Brasil a respeito do trabalho do curador. Muito se fala nos jornais sobre uma ou outra
polêmica, algum excesso exibicionista, alguma ação entre amigos, essa ou aquela
cenografia bizarra, mas em poucos momentos temos uma leitura mais detida sobre a
profissão em si.
É difícil determinar o momento exato do nascimento de um ofício. O ofício do
curador, como tantos, surgiu pelo resultado do tempo, em lugares e momentos muito
diferentes da história. Considerando que foram poucos os que tiveram o privilégio de
escrever a história oficial contada até hoje nos livros e exposta até hoje nos museus, tais
escolhas dependeram, na maioria das vezes, dos objetivos que motivaram eleger ou
descartar determinadas produções artísticas. E o ofício do curador se refez todo o tempo,
conforme a “contação” dessa história da arte.
Então, por onde começar? Talvez pelo final do Cinquecento, com a criação da
Galeria Uffizi – considerada o primeiro museu da história –, ou talvez pela ordenação dos
objetos nos gabinetes de curiosidades ou, antes ainda, pelas próprias escolhas dos arquitetos
bizantinos. A questão poderia então incidir na denominação em si, e daí talvez optássemos
por escolher o dia e o ano em que o nome curador foi proferido pela primeira vez;
verificaríamos então sua etimologia e pesquisaríamos se os gregos já faziam uso do termo
naquele “momento clássico da história universal”. Poderíamos decidir pelo início da noção
de arte, como a entendemos hoje, ou pelo conjunto de ações que configuraram o chamado
mercado da arte, ou pela história da formação do público... e por aí vai.
Seja como for, sem uma data magna, podemos na verdade ficar um pouco mais
tranquilos e compreender que a curadoria foi tomando forma com a reprodução e reflexão
de um conjunto enorme de experiências práticas e, como tal, sendo valorizada à medida que
o mundo da arte passou a se configurar mais fortemente pela composição de diversos
agentes culturais no campo – antes atuando em posições consideradas periféricas –, como
jornalistas, críticos, professores universitários, museólogos e conservadores. Vemos isso
mais claramente a partir da segunda metade do século XIX.
Em linhas gerais, até o século XIV o valor da arte estava muito mais atrelado ao
tema do que ao artista em si – e talvez seja por isso que se tenha tanta dificuldade em
descobrir a autoria de muitos trabalhos desse período –; os séculos XV e XVI promoveram
uma mudança importante nesse sentido, passando a valorizar conjuntamente obras e artistas
(o que tornou possível, por exemplo, o nascimento da própria história da arte, por Giorgio
Vasari); dali para frente, a produção de arte foi cada vez mais valorizada, com uma
mobilidade crescente entre países e coleções, que resultou, dentre outras coisas, nas
Academias e, mais tarde, nos museus abertos ao público, tendo o Louvre (em 1793) como
marco. Os Salões de arte das Academias, realizados com regularidade a partir da década de
1670, seguiam padrões estéticos rígidos e princípios hierárquicos de disposição das obrasque
pouco tinham a ver com a organização do espaço como o pensamos hoje. Nesse sentido, a individual
de Gustave Courbet em 1855 – curada por ele mesmo – abriu caminho
para um mercado independente das regras impostas pelos Salões oficiais, que não davam
mais conta de suster as novas produções e necessidades que já se faziam sentir na recém
nascida arte moderna.
O modernismo foi revolucionário em vários aspectos, mas é preciso considerar que
se fez ainda pautado numa série de preceitos acadêmicos muito caros aos artistas, como a
pintura de cavalete e a moldura, por exemplo. A ruptura se deu em outras esferas, mas a
permanência de determinados elementos tradicionais também possibilitou repensá-los em
suas variadas funções. Ampliou-se então a reflexão a respeito do modo de pendurar os
quadros, de iluminá-los, de fazer o público circular da melhor maneira no espaço da
exposição... De modo que, entre 1890 e 1930, com a crescente valorização de cada agente
em seu “ofício”, o mercado de arte já poderia ser considerado bastante profissionalizado.
O desaparecimento do uso da moldura a partir dos anos 1950 certamente contribuiu
para uma tomada de atenção particular quanto ao espaço expositivo. Aquela parede, antes
“invisível”, exterior à moldura, agora se tornava perigosamente ativa (desejosamente ativa).
Esse diálogo entre parede e obra – que não aconteceu evidentemente só com a pintura – fez
com que a figura do curador (antes muito mais ligada à do profissional que cuidava dos
acervos) se tornasse central para o êxito de uma exposição. Como se pôde perceber, a
curadoria é um ofício antigo, mas uma profissão relativamente nova.
Para este livro, foram convidados oito pesquisadores com experiências bastante
diferentes na prática da curadoria. O objetivo foi criar uma tomada mais ampla que não
configurasse uma única categorização do assunto, mas, ao contrário, que formasse um
conjunto plural de visões, somadas às de cada leitor. No final do livro, portanto, não
teremos uma definição do curador, uma ideia acabada, mas talvez “começada” deste ofício
que está sempre sendo revisto, a cada nova exposição.
O primeiro capítulo começa com "As montagens de exposições de arte: dos Salões
de Paris ao MoMA", da pesquisadora Rejane Cintrão, que resgata alguns momentos
fundantes que construíram a ideia que temos hoje de expografia. A própria disposição dos
quadros na parede, por exemplo, possui uma história que se revela através da apresentação
de autores e imagens das primeiras exposições. Vale destacar a presença das importantes
imagens do Salon des Independents, raramente encontradas em livros, e da impressionante
reorganização do Landesmuseum feita por Alexander Dorner na década de 1920, um
paradigma do nosso modo de expor arte.
No segundo capítulo, Cauê Alves trata "A curadoria como historicidade viva", ou
seja, do questionamento à própria construção totalizadora da curadoria na história,
mostrando que o equilíbrio de forças que o trabalho do curador exige não deve se balizar
pelas necessidades do mercado ou dos patrocinadores. “É preciso também que o curador
saiba resistir a interesses vários e, ao marcar posições, evitar a máscara da neutralidade”,
potencializando a base de suas reflexões nas relações “laterais, frontais ou diagonais” que
as obras de arte suscitam em cada momento presente. Os três ensaios seguintes são estudos
de caso, ou seja, descrevem, de modos muito diferentes entre si, o trabalho de concepção de
exposições específicas.
O capítulo terceiro, chamado "Novo comportamento do Museu de Arte Contemporânea", é um pequeno,
mas muito importante, artigo publicado originalmente em 1974 na Revista Colóquio Artes, em
que Walter Zanini – maior referência da história da arte do Brasil – descreve para o público
português sua experiência com as exposições anuais chamadas JAC (Jovem Arte
Contemporânea), realizadas no MAC da Universidade de São Paulo, na década de 1970.
Uma proposta inédita de montagem museográfica, em que o museu foi transformado em
uma espécie de ateliê coletivo, orgânico e constantemente ativo, transferindo a ênfase
colocada na obra para o processo em si, sem qualquer divisão entre artistas e público.
O quarto e quinto capítulos apresentam dois estudos de caso que se relacionam pelo
olhar estrangeiro, um de fora, outro de dentro.
O capítulo escrito por Paula Braga e intitulado "O curador e a galeria" fala da exposição
"OutrasFloras", sob curadoria de José Roca, montada na Galeria Nara Roesler em 2008, que
tratou das contravenções urbanas como consequência de uma exploração colonial violenta.
Além da exposição, o texto de Paula nos traz um assunto ainda pouco estudado: os inúmeros
procedimentos necessários para a montagem de uma exposição numa galeria de arte privada.
Visitas constantes aos ateliês dos artistas, pesquisas do acervo, contatos com instituições de fora,
tratativas aduaneiras, seleção e organização de feiras internacionais, são algumas das incumbências
que mostram, antes de tudo, a importância da atividade do curador para a valorização das
obras e o bom funcionamento do mercado.
O quinto capítulo se chama "Como explicar arte contemporânea brasileira para o
público internacional", em que o crítico e historiador da arte Tadeu Chiarelli descreve todo
o desenvolvimento da curadoria da exposição Desidentidad para o Instituto Valenciano de
Arte Moderno, desde o processo de aquisição das obras pelo MAM de São Paulo – e as
relações conceituais suscitadas por cada trabalho – até a exposição propriamente dita, na
Espanha. Além de ser um extenso e rico estudo de caso, este capítulo possui uma
configuração atípica: divide-se em duas partes, sendo o segundo texto uma espécie de
reescrita do primeiro, criando assim dois tempos de uma mesma montagem. Desta forma é
possível acompanhar, junto com o autor, seu processo de elaboração.
Se a estrutura que Tadeu nos propõe é nova, a de Mabe Bethônico é ainda mais
inusitada, apresentando seu "Museu das Águas de Rio Acima" na forma de projeto para um
edital. O que pode parecer, a princípio, inadequado para o texto de um capítulo, por se
tratar de uma ficha de inscrição, transparece um rico material de análise e uma boa
oportunidade para o público leitor ter contato com uma etapa importante da produção e
reflexão curatorial. Há, no próprio projeto, questões técnicas que toda implantação
museográfica está sujeita a passar: como a necessidade de ter um prédio, a adaptação do
espaço às exposições ou a dotação orçamentária para manutenção. Enquanto este livro
estiver no prelo, na mesma ocasião, o projeto de Mabe estará sendo avaliado pela
instituição a ele destinada; o que torna a situação bastante interessante, quase ficcional, pela
formulação de algo que pode ou não vir a existir, ainda que exista definitivamente naspáginas do livro impresso. Algo absolutamente coerente com o que Mabe tem elaborado ao longo de sua trajetória como artista e pesquisadora.
O sétimo capítulo fica a cargo de Glória Ferreira; intitulado "Escolhas e experiências", trata dos interstícios que subjazem da atividade curatorial, como o título das obras e exposições, o entrelaçamento com a crítica, a dimensão pública da arte, a crise do
universalismo e as múltiplas historiografias que perfazem uma nova cartografia simbólica
da arte. Seu texto coloca o curador no papel de articulador e construtor de sentidos, “cuja
hipótese se concretiza na realidade, enquanto interação com a arte, mediação entre obra,
espaço expositivo e público”.
O livro termina reafirmando seu tema principal: o ofício do curador. Mostrando que
"Não se nasce curador, torna-se curador", Cristiana Tejo fala do interesse cada vez maior
por essa profissão “de poucos”, que proporciona viagens, prestígio e bons relacionamentos,
mas que também é cercada de inúmeras dificuldades educacionais, institucionais e
políticas, principalmente num país periférico como o Brasil. O esforço, o rigor e o bom
senso devem acompanhar o aspirante a esta carreira junto com seu principal preceito: ter
algo a dizer.
O conhecimento da maioria destes curadores brasileiros não foi adquirido nas
universidades, como alunos, mas sim pelo dia a dia de suas pesquisas de campo, pela leitura
de textos estrangeiros, pela prática como docentes e pelas exaustivas noites passadas dentro
de cubos (nem tão) brancos, mas que os anos brindaram com a chamada experiência.
A ordem de leitura dos textos, na verdade, não é tão importante. Fiz aqui minha
sugestão, e espero que o leitor encontre as suas. Se o final da leitura criar certa expectativa,
um sinal de reticências, uma necessidade de ir atrás de mais informações... que bom!
Esperamos que este seja o primeiro de muitos livros.
Alexandre Dias Ramos